Longe da família, Hemerson Maria dribla obstáculos e colhe bons frutos no Vila

Vale a pena perder o aniversário de um ano de um filho por causa do trabalho? E perder a formatura da esposa? E se ausentar no Dia dos Pais ou no Dia das Mães? Pois para quem trabalha no futebol, tais sacrifícios não são nem questão de escolha, e sim de necessidade. Quem enxerga apenas o glamour de torneios como a Copa do Mundo, das cifras astronômicas da janela de transferências internacionais e da enorme badalação por trás do meio do esporte pode não ter noção dos obstáculos que é preciso driblar para conseguir um lugar ao sol.

Eis aqui um pouco da história de Hemerson Maria, um destes casos de intensa luta e dedicação. O técnico catarinense de 45 anos conduz o Vila Nova de maneira segura na Série B do Campeonato Brasileiro. Claro que as privações citadas acima não são “privilégio” – ainda mais no Brasil – apenas de Hemerson ou de outros profissionais envolvidos no mundo do futebol e do esporte em geral. Mas é justamente daí que surge a força para continuar e o bom exemplo a ser seguido. Campeão em 2014 pelo Joinville, Hemerson Maria espera conquistar novamente o acesso, desta vez com Tigrão.

Nesta segunda-feira, o Colorado abre a 23ª rodada da Série B contra o Guarani, às 20h. Terceiro colocado com 38 pontos, o time goiano é o que mais permaneceu no G-4 – a zona de acesso para a Série A – e tenta melhorar ainda mais a campanha diante de um concorrente que considera direto na competição. O Guarani é o oitavo colocado, com 31 pontos ,e, apesar de ter perdido rendimento nas últimas rodadas a ponto de demitir o técnico Vadão e contratar Marcelo Cabo, é tratado no Onésio Brasileiro Alvarenga com todo respeito.

Esta é a tônica e a receita do sucesso do Vila Nova até aqui. O clube sonha, sim, com o acesso para a Primeira Divisão nacional. Entretanto, ainda não pensa lá na frente. Cada partida é tratada como uma verdadeira decisão. Longe de parentes, amigos e pessoas importantes, elenco e comissão técnica se unem neste objetivo em comum. Hemerson Maria recebeu o GloboEsporte.com e falou um pouco mais sobre os desafios da carreira e do Tigrão. Deu até para falar de futebol…

Confira o bate-papo abaixo:

(GloboEsporte.com): O que está achando de Goiânia?

(Hemerson Maria): Já conhecia o clima. Trabalhei no Crac. Lá também faz muito calor. Gosto bastante do clima de Goiânia. Dificilmente chove. No Sul é diferente. Venta muito, tem o famoso “vento sul”. O vento que vem do mar é brincadeira.

Ficar longe da família é a maior dificuldade da carreira de um técnico?

“É até difícil falar sobre isso. É muito sacrifício, até falei numa preleção para os jogadores. Eu perdi a formatura da minha esposa (Eliane) na faculdade. Ela até hoje não me perdoa por isso. Perdi o aniversário de 1 ano da minha filha (Hérika). Festas em casa eu nem conto mais… mas esses dois episódios foram mais marcantes.”

– Teve o Dia dos Pais agora. De cinco anos para cá dificilmente eu acompanho o Dia dos Pais em Florianópolis. Antes eu trabalhava lá. Minha filha chorou. Houve homenagem para todos os pais. No fim, os alunos desceram para entregar as lembranças aos pais. Só minha filha não desceu. Ela ficou sozinha e começou a chorar. Minha esposa me mandou o vídeo.

Você perdeu pessoas importantes recentemente…

– Depois que eu vim para Goiânia eu perdi minha avó, que ajudou a me criar. Minha mãe é professora e trabalhava muito. Meus pais saíam para trabalhar e meus avós cuidavam de mim e dos meus irmãos (três homens e uma mulher). A gente é de uma área que já teve os piores índices de violência de Florianópolis. Muito amigo meu foi para o caminho errado. Agradeço muito aos meus avós. Meu avô faleceu quando eu estava no Avaí, o clube de coração dele. Fui campeão pelo Avaí. Não pude dar esse presente em vida para ele, mas sei que ele vibrou bastante. Não pude acompanhar o sepultamento da minha avó agora, mas pude dar tudo o que ela mereceu. Pedi minha esposa para não deixar faltar nada. Também perdi um tio, que me levava para os campos quando eu comecei a jogar. Mas nossa vida é assim, tem que ter o sacrifício.

Você teve um problema de saúde em 2015. Como foi?

– Era para ser o melhor ano da minha carreira. No primeiro semestre fomos campeões catarinenses no campo (o Joinville perdeu o título no tribunal posteriormente). E o Joinville estava na Série A. Mas fiquei cinco rodadas e fui demitido. Quando fui demitido, fiquei na adrenalina. Fui para casa, fui para a praia, fui caminhar e comecei a sentir dores no quadril. Fiz um exame e descobri que meu quadril estava “arrebentado”. Tive que fazer uma cirurgia, foi um problema parecido com o do Gustavo Kuerten. Era um desgaste. Eu saía para dar um treino ou caminhar à tarde e não conseguia sair do carro quando voltava. Eu tinha que pegar minha perna e levantá-la. Tinha que pedir ajuda para minha esposa. Coloquei uma prótese e fiquei sem trabalhar até o fim do ano.

 Como foi enfrentar o Figueirense (em julho) e rever muita gente conhecida?

– Foi legal. É um clube onde passei 20 anos da minha vida. Foram 10 anos como jogador da base e 10 anos como treinador. É metade da minha vida. Sou bastante respeitado. Muito bem recebido. Fui campeão pelo Avaí lá e não me tratam mal. Agora, quando nós fomos, subi sem precisar de escolta, não precisa. O clima estava tenso (por causa da má fase do Figueirense), mas sempre me tratam muito bem.

O que te fez vir para o Vila Nova agora?

– Gosto muito de desafio. Minha ideia era parar no fim do ano passado e começar no Estadual. Mas tive o convite do Fortaleza e subir o Fortaleza era um desafio, são 60 mil pessoas por jogo. Fui para lá por causa disso, do desafio. Quando o Felipe (diretor de futebol do Vila Nova) me telefonou e me passou o projeto do clube, e eu gostei. Vim pelo desafio também. Já conhecia alguns jogadores e também a força da torcida. Estou no Vila Nova por isso.

O Marcelo Cabo estava no Figueirense e agora está no Guarani, o próximo adversário do Vila Nova. Acha que ele leva alguma vantagem?

– O Marcelo Cabo é muito competente. Hoje em dia existem os analistas de desempenho, que vão passar muita coisa. Além disso, ele teve uma semana para trabalhar o time. Vai ser um jogo muito difícil.

O Vila é o time que mais permaneceu no G-4. Você acha que o clube tem que acreditar mais em seu potencial? Notou algum conformismo com a realidade atual?

– Quando falo do clube, falo de torcida, time e imprensa. As pessoas que são de Goiânia não têm a noção do que é o Vila Nova. A estrutura, a torcida. Foram 18 mil pessoas contra o ABC. Não dá esse público em clássico em Florianópolis entre Avaí e Figueirense, equipes acostumadas a jogar a Série A. E muita gente aqui achou 18 mil pessoas pouco. O Vila tem potencial para ser grande. Tem estrutura física, torcida e pessoas muito competentes. As pessoas aqui dentro são muito comprometidas com o clube, elas dão o sangue. Um clube como esse tem um potencial enorme de crescimento.

Dá para fazer alguma relação com o Joinville, que foi campeão de forma surpreendente da Série B em 2014?

– O Joinville foi o grande clube catarinense da década de 1980, mas adormeceu. Ressurgiu em 2011 com uma nova administração. O clube estava sem série, não tinha local de treinamento, não tinha nada, só as camisas. O presidente organizou tudo. O Joinville foi campeão da Série C e da Série B. Chegamos a quatro finais seguidas em Santa Catarina. Foi muito legal, muito por conta da administração. O que eu vejo no Vila Nova é um clube sério. Não deve salário, não deve premiação. Nossa logística de viagem é muito boa. Quando isso acontece, as coisas dentro de campo fluem de uma maneira natural. Lógico que tem o comprometimento e o trabalho dos atletas, mas vejo que o Vila Nova é muito bem administrado.

E em campo? Qual é o segredo do Vila?

– Acho que é a disciplina tática e o comprometimento dos jogadores. Não temos nenhum jogador brilhante tecnicamente, mas nossa força coletiva é forte. É o time que mais ficou no G-4. Nossa defesa é a terceira melhor. O ataque está evoluindo e não polariza em cima de um jogador. Não é apenas um jogador que faz os gols. E temos muito a evoluir

Você considera o Vila Nova um time pragmático?

– Não. Considero um time muito organizado. Se pegar o jogo contra o Internacional, se analisarmos o jogo vamos ver que o Inter não teve chances de gol, a não se o pênalti. E nós tivemos. Contra o Boa Esporte aqui, que não tivemos muita posse de bola, o Boa mandou uma bola na trave, mas nós tivemos outras chances. Em média, temos 40% de posse de bola, mas acontece muitas vezes o que aconteceu contra o ABC. Finalizamos 20 vezes, mandamos cinco bolas na trave. Talvez seja um time que não vá ter 60% de posse de bola, até por ser um time muito vertical, mas é um time muito sólido defensivamente. Pra uma equipe do porte do Vila Nova, que não tem condição de contratar grandes estrelas, esse modelo de jogo é perfeito, pois potencializa a questão coletiva.

Você acha que a torcida já entendeu o modelo de jogo do Vila Nova?

– Acho que a torcida nos ajudou bastante e tem que entender o modelo de jogo. O Barcelona faz 1 a 0, fica o tempo todo com a bola no pé e a torcida gosta. O Real Madrid e o Bayern de Munique são maios verticais. Aqui no Brasil, o Grêmio mudou um pouco o estilo de jogo, é como se fosse um time carioca do Sul, pelo futebol jogado, e o Botafogo é como se fosse um time gaúcho do Rio de Janeiro. E a torcida do Botafogo abraçou. Penso que dentro das condições financeiras e dentro do que os jogadores podem oferecer você tem que extrair o máximo. Por isso, nosso modelo de jogo casou bem. Nós potencializamos as características do jogador.

Você acha que os técnicos precisam estudar o futebol? O que você faz para adquirir conhecimento?

“Eu invisto bastante na minha carreira. Assim que acertei com o Vila Nova, fiz uma viagem de Florianópolis a Goiânia de carro porque eu tinha que trazer minhas “tralhas”. Tenho meu quadro tático, meu projetor, tenho essas ferramentas que uso no dia a dia. Também trouxe 30 livros.”

– Eu pesquiso muito sobre treinamentos. Pesquiso em Portugal, que tem uma literatura boa de futebol. A Espanha também. Mas também não deixo de estar atento ao futebol brasileiro. No ano passado eu e meus auxiliares fizemos uma visita para o Fernando Diniz, fiquei dois dias com ele. Também acompanhamos a filosofia do Dorival Júnior. Também fui a um clube que eu trabalhei, o RB Brasil, que faz um intercambio muito bom com a Áustria. Todos os jogadores da base falam inglês. De três em três meses eles viajam para o exterior. Aprendi demais lá. Todo ano eu faço uma visita.

Tem algum time que você gosta de ver jogar?

– Gosto do Barcelona, mas o modelo de jogo deles já vem desde a época do Cruyff. Os jogadores são formados lá, como o Piqué, Iniesta, Busquets. Eles têm o toque de bola e contratam os sul-americanos, que vão gerar o desequilíbrio. Também gosto muito do Bayern de Munique e do Real Madrid, que são muito verticais e agudos. Aqui no Brasil eu gosto muito da organização do Corinthians. Também gosto de ver o Grêmio. Antigamente para jogar lá tinha que ter 1,85m e dar porrada. O Grêmio mudou muito seu modelo de jogo.

O que a gente pode esperar do Vila Nova até o fim do ano?

– Muita entrega e comprometimento. Acho que a gente está no caminho certo, mas é preciso ter muita humildade. Fico policiando os jogadores para ver o que eles falam. Não tem “oba-oba”. É rodada a rodada, partida a partida. Cada jogo é uma batalha. Teremos confronto direto com Guarani, América-MG, Ceará e CRB fora de casa. Esse mês será fundamental para a gente. Temos que manter o nível de concentração elevado. Não podemos nos empolgar na vitória e em ficar deprimido na derrota, pois ela vai acontecer.

Fonte: Globoesporte